A vida aos 10 anos:
O que mudou entre duas gerações
Chamavam-se Anas Tudo (especialmente Cristina, Filipa, Rita ou Sofia).
As outras eram Carla, Sandra ou Sónia.
Os rapazes eram João Tudo (geralmente Pedro, Nuno ou Paulo) ou Luís Miguel.
Muitas mães eram domésticas, e levantavam-se mais cedo para enfiarem almôndegas à força nos termos da escola. As que não eram, andavam muito ocupadas nas manifestações e davam dinheiro para comer na cantina.
Principal preocupação dos pais: que os filhos dessem em doutores.
Pequeno-almoço: papa de qualquer coisa, se possível com leite gordo e muito açúcar, ou então café com leite.
Lanche: uma carcaça mole ensopada de doce de morango ou marmelada.
Comida da cantina: carne assada com massa, bife com massa ou jardineira.
Levava-se para a escola uma mochila verde tipo tropa com fechos de cabedal que encaracolavam no segundo dia e com inscrições dos grupos favoritos: Duran Duran, Spandau Ballet. Havia uma régua espetada nos dias das aulas de desenho. Pesavam toneladas.
Não se conseguia encontrar os livros escolares. Estavam sempre esgotados porque eram os mesmos para toda a gente.
Havia quem os forrasse para passarem para o irmão mais novo no ano seguinte.
Na papelaria da esquina comprava-se 1 embalagem de marcadores, 1 afia, 1 borracha, 1 esquadro e era suposto que desse para todo o ano.
Na ginástica, usava-se sapatilhas brancas e fatos de treino azuis escuros, encarnados ou verdes com uma risca branca e uns fechos muito desconfortáveis que faziam uma marreca à frente. E andava-se com aquilo o dia todo.
Nas aulas faziam-se cadernos de autógrafos a dizer: " Nas ondas do teu cabelo, ensinaste-me a nadar / Agora que estás careca, ensina- me a patinar".
Passavam-se papelinhos.
Nas férias iam para casa dos avós ou eram deixados à balda.
Vestia-se aquilo que viesse à mão: blusas verde-eléctrico com golas de bico, calças de bombazina com joalheiras.
As meninas podiam ter aplicações de malmequeres de pano, vestiam saias de pregas sem nenhuma forma e sapatos rasos com lacinhos. Ambos: pull-overs às riscas, camisolas tricotadas pelas mães dois números acima, kispos (que deveriam durar quatro anos, no mínimo), galochas amarelas e botas caneleiras.
Não havia a Zara.
Era normal ser-se muito feio com 10 anos.
Trocavam-se cromos das Maravilhas da Natureza, da Kate Greenaway ou da caderneta do campeonato de futebol.
Em casa brincava-se às bonecas, aos carrinhos e com os bonecos dos estrunpfes.
Jogava-se ao jogo da Glória e ao Monopólio.
Batia-se nos irmãos.
Com os amigos, andava-se de skate, jogava-se ao elástico, o bate-pé e ao quarto-escuro. Alguns ficavam na rua a tarde toda a jogar à bola e a andar de bicicleta.
Lia-se: "A Condessa de Ségur", os "Cinco", as "Gémeas no Colégio de Santa Clara" e a Patrícia, a Mónica, a Mafaldinha e o Astérix. Os rapazes liam o Michel Vaillant.
Na televisão via-se a "Abelha Maia", a "Água Viva" e o "Espaço1999" (em reposição contínua), O Vasco Granja com desenhos animados checoslovacos que ensinavam atravessar a rua, a Pantera cor-de-rosa e o professor Baltazar.
Aos domingos, o Júlio Isidro, o "Sítio do pica-pau amarelo", "Dallas", "Homem da Atlântida", os "Marretas" e os "Anjos de Charlie". No cinema: "7 noivas para 7 irmãos", "Sissi", "ET", a "Musica no coração" pela milionésima vez, e "Os malucos" em outras fases da sua existência.
Ídolos: O Chalana, os Queen, Duran Duran, Bruce Springsteen, Brian Adams, Sheena Easton e Bob Geldolf.
O que se vai recordar: esfregar a sola dos sapatos novos no passeio, a bola da comida de termo no prato, Verdade ou Consequência, Os Porcos no Espaço, a tiara de lata da Super mulher, as barbatanas entre os dedos do Patrick Duffy e os pacotes de Belinhas.
Têm hoje 10 anos ou por volta disso.
Chamam-se Joana, Inês e Filipa. Ou então, Marta, Mariana, Madalena ou Rita, sem falar na Cátia e na Vanessa, claro. Os rapazes são André, Tiago, Bernardo, Fábio ou Marco.
As mães trabalham até às 8 da noite, passam duas horas paradas no tabuleiro da ponte a ouvir a Rádio Nostalgia ou a pensar na vida e sabem que descongelar é uma arte.
Principal preocupação dos pais: que os filhos não dêem em drogados.
Pequeno almoço: qualquer coisa que tenha crocante, chocolate e brinde escrito no mesmo pacote.
Lanche: donuts, batatas fritas, tiras de milho frito ou snacks de chocolate.
Comida da cantina: carne assada com massa, frango com massa ou bife com massa.
Levam para a escola uma mochila de rodinhas. Ou, então, mochilas impermeáveis de marca, pretas ou azuis-escuras.
Continuam a pesar toneladas.
Em Setembro vão ao corredor do hipermercado que diz "Regresso às Aulas" e compram milhares de canetas, aguarelas e lápis de cera. Têm coisas sofisticadíssimas dentro do estojo, principalmente as meninas: borrachas com cheiro a tangerina, elásticos e fitas do cabelo, autocolantes minúsculos e pulseiras.
Na ginástica, as meninas vestem tops e calças de lycra. Os rapazes, calções.
Ambos: ténis com sola fluorescente e que não digam "Made in Indonésia".
Nas aulas jogam Gameboy e mandam mensagens pelo telemóvel.
Nas férias vão para campos de férias moer o juízo dos animadores ou passam 15 dias em Inglaterra a estudar Inglês. Os mais sortudos vão para casa dum amigo.
Ambos vestem calças e sweat-shirts com t-shirt por baixo e ténis em camurça.
As meninas usam brincos, pulseiras, borboletas autocolantes para espetar no pescoço, molas, ganchos, malinhas, gel fluorescente. Há calças especiais para meninas, mais justas em cima. Todos os anos (algumas todos os dias) têm roupa nova.
Conhecem-se as tendências internacionais.
Há marcas que usam e outras que só por cima do seu cadáver.
Dois anos depois, tornam-se dread.
Trocam-se cartas do Pokémon e brindes de pacotes de batatas fritas.
Quem pode, joga computador e fala num chat da Internet até às 4 da manhã.
Bate-se nos irmãos.
Nunca se brinca na rua porque se pode ser raptado por um pedófilo.
O tempo que não se está na escola, está-se no inglês, na natação, no taekondo, no kickboxing ou, então, em casa a olhar para o ar.
Lêem a colecção "Uma aventura" e outros autores portugueses. Os "Arrepios". "O clube das Amigas". Os mais intelectuais já se atiram ao Harry Potter.
Na televisão vêem tudo o que os adultos vêem. Filmes de terror e desenhos animados (às vezes são a mesma coisa).
O "Ranger do Texas", o "Querido Professor", o "Zip Zap" e os
programas de videoclips. Há quem ainda veja o "Batatoon" por saudades, embora não confesse. Quem tem TV cabo ainda vê o Cartoon Network e o Panda.
Muitos têm toneladas de cassetes com filmes da Disney.
No cinema vêem "O professor chanfrado", "Missão impossível", e tudo o que tenha um carro a perseguir um camião (os rapazes) e Tom Cruise a perseguir quem quer que seja (as meninas).
Ofendem-se quando os querem levar aos desenhos animados, embora depois gostem.
Ídolos: o Figo, os Anjos, os d´Arrasar, o Miguel e o André.
Também há a Britney Spears e a Jennifer Lopez, os Backstreet Boys e todas as bandas de adolescentes que pareçam agricultores suecos do século XVIII.
O que se vai recordar: ainda não se sabe.
Embora alguns falem no cheiro dos ténis do irmão.